O caso da matadora de animais condenada a 12 anos de prisão

Resumo do caso e da sentença da matadora de animais condenada a 12 anos de prisão em decisão inédita do TJ de São Paulo.

Protetores de animais já suspeitavam da facilidade com que Dalva Lina, protetora independente, promovia adoções. Não importa quantos animais ela recolhia, no dia seguinte sempre já tinham sido encaminhados para novos lares ou para seu sítio. Todas as tentativas de descobrir os novos lares dos animais eram infrutíferas. Assim, preocupados, alguns protetores ratearam entre si o pagamento de honorários de um detetive particular para rondar a casa de Dalva e tentar descobrir o que estava ocorrendo.

Achei muito bacana isso! Primeiro, porque a gente não vê o trabalho de fundo das entidades de proteção; a ideia que o grande público tem é que eles recolhem, cuidam e doam animais; mas as atividades de proteção vão muito além disso, quando a pessoa/entidade é séria. Segundo, porque a gente sabe que muita gente pega bicho para sacrifícios de Candomblé ou para alimentação de animais exóticos, como grandes cobras; isso tem que ser investigado, para não virar comércio, por exemplo, de animais abandonados. Mas, “o buraco era mais embaixo”, a realidade era muito pior!

Durante os 20 dias em que esteve de campana nas proximidades da casa de Dalva, das 8 às 20 horas, o detetive observou a mesma recebendo animais diariamente, num total de quase 300. Não viu nenhum animal saindo da residência. Além de receber animais de protetores independentes, a acusada também saía de casa com biscoitos para atrair aqueles que perambulavam pelas ruas. No dia 12/01/12, por volta das 19:30h, o detetive viu a mulher espalhar 5 sacos de lixo de 100 litros em frente à casa da vizinha. Abriu um dos sacos e, ao constatar cadáveres de gatos, o profissional acionou a Polícia Militar e a imprensa, para que os outros volumes fossem abertos na frente deles. Ao todo foram encontrados 37 animais mortos, sendo tudo fotografado. Somente no dia seguinte os militares puderam entrar na casa de Dalva, retirando de lá 8 gatos vivos, entregues à ONG Adote um Gatinho, que capitaneou todas as providências, inclusive a ação judicial, cuja sentença estou resumindo.

A veterinária de confiança da ONG atestou que os gatos vivos estavam em situação lastimável: não eram alimentados há dias, estavam muito assustados, tinham doença respiratória, sarnas, vermes, pulgas, carrapatos, desnutrição e lesões.

O perito responsável pelo laudo cadavérico dos 37 animais encontrados informa que foram mortos de maneira lenta e cruel, sendo antes disso submetidos a toda espécie de maus-tratos. Todos tinham múltiplas perfurações no tórax, o que causava uma lenta perda de sangue. No corpos foram encontrados uma substância sedativa para cavalos, sem efeito analgésico, que em pequenos animais produz ansiedade. Eles estavam acordados quando morreram e sabiam o que iria acontecer, sofrendo a ansiedade causada pelo medicamento por 20 a 30 minutos antes de morrerem. E tendo em vista que alguns foram mortos juntos, essa ansiedade foi aumentada pela consciência do que estava acontecendo. Todos precisaram se amarrados, pois se debatiam e entravam em convulsão. Nas palavras do perito, foi uma morte “dolorosa, lenta e cruenta”. O que matou os animais, após dias de maus-tratos e horas de tortura, foi a hemorragia causada pelas perfurações, que em alguns animais chegou a dezoito. Todas em região distante do coração, o que denota a intenção de causar dor. Perfurações causadas com força bruta e repetição de golpes. Dos 37 animais encontrados, 20 eram filhotes de gatos, 3 de cães, 7 gatinhos recém nascidos e gatas em amamentação. Alguns haviam morrido nas últimas 24 a 48 horas, outros há semanas. A forma como foram torturados autoriza a concluir que Dalva tinha prazer com o que fazia. Por isso, o detetive não observava a saída dos animais. Ela acumulava os corpinhos e depois os desovava durante a noite.

Nenhuma patologia foi encontrada nos cadáveres que justificasse eutanásia. Nem foram encontrados medicamentos que aliviassem dores. Ainda que Dalva tenha afirmado que o que fazia era para aliviar o sofrimento dos bichos, isto não se comprovou.

Com tantas e tão robustas provas, a ONG Adote Um Gatinho ajuizou ação criminal.

Duas amigas da acusada testemunharam a seu favor, afirmando que quando frequentavam a casa da acusada, encontravam animais bem tratados e cuidados. Como a veterinária da ONG informou que os animais estavam em condições precárias, ambas estão sendo processadas por falso testemunho.

Na defesa, Dalva dizia-se perseguida pelos protetores, tratando-se o caso de vingança promovida por alguém com quem teria discutido certa vez. Nada foi comprovado.

Não bastasse o choque pelos atos praticados, os números impressionam. Como já foi dito, durante os 20 dias de campana do detetive, de 8 às 20 horas, observou-se o recebimento de quase 300 animais. Como nenhum deles foi visto saindo da residência, presume-se que tiveram o mesmo fim dos 37 encontrados. Mais que isso, 300 animais em 20 dias, nos leva a milhares em poucos meses. Há quanto tempo, há quantos anos, essa mulher tem agido?

Porém, impossível condenar à base de presunção. Por isso, o processo discute sua culpabilidade apenas em relação aos 37 animais mortos encontrados nos sacos que ela própria depositou na calçada. Os cadáveres e os medicamentos encontrados são as única provas de seus crimes. Mas são provas robustas. Trata-se, sem qualquer exagero, de uma serial killer de animais, um caso absolutamente peculiar, onde são encontradas todas as características dos assassinatos em série.

Para fundamentar a condenação pelos crimes de ferir animais domésticos, agravado pelo resultado morte, e pela prática de maus-tratos, a juíza analisa aspectos sobre psicopatia (índole criminosa), citando dentre outros publicações do FBI. Fala também sobre a senciência dos animais (ter sentimentos, sofrer ou alegrar-se, ter medo, prazer, etc), estudando a evolução do pensamento neste sentido, desde a Bíblia, passando por estudos filosóficos e científicos. Discorre sobre a diferença entre crime continuado (prática de vários crimes como continuação do primeiro; benéfico ao criminoso por aplicar a pena mais grave) e concurso material (prática de vários crimes idênticos ou não, mas independentes; pior para o criminoso por somar as penas), justificando a aplicação deste último entendimento, com base na doutrina e jurisprudência dos Tribunais Superiores. Por fim, apresenta a legislação e a doutrina jurídico-ambiental que não considera os animais sujeitos de direito, mas apenas objeto material da conduta. Ou seja, no Brasil, ainda, o bem protegido nos crimes ambientais, é a sociedade e não os animais e outros seres. Porém, demonstra o quanto atitudes cruéis atingem de maneira aviltante o homem e a coletividade, motivo pelo qual devem ser severamente repreendidos. Por fim, reconhece a necessidade de aplicação do agravante da tortura, mesmo não sendo o animal objeto do crime, mas sim da conduta, a fim de que se possa garantir o princípio constitucional da individualização da pena (ajustamento da pena à conduta e histórico pessoal do agente).

Quando ajuizou a ação, a Adote Um Gatinho pediu não apenas a condenação por ferimentos que levaram à morte e maus-tratos aos animais, mas também pelo uso de substância tóxica que coloca em risco a saúde humana. Trata-se do medicamento utilizado para sedar os animais, causando-lhes ansiedade. Deste crime, a ré foi absolvida, porque sua intenção não era causar toxidade ao meio ambiente, mas sim aumentar o sofrimento dos animais. Isto agrava o crime de ferimentos, mas não gerou o resultado necessário para considerar como crime ambiental. Também foi pedida indenização pelos gastos que ONG teve com tudo isto, que a juíza entendeu por bem que devem ser discutidos no processo Cível, e não no Criminal.

Enfim, agora vem o mais complicado: pegar todas estas teses e conclusões e encontrar na lei onde tudo se encaixa, de maneira que se possa aplicar uma pena justa (sim!!! Justa!!!) que tenha as características didática e de punição, não apenas para recriminar a conduta da Dalva, mas também para desestimular outros criminosos, atendendo aos anseios da sociedade.

A legislação brasileira é dirigida aos humanos. Visa tipificar (enquadrar como ilícita) sua conduta, protegendo-nos dela. É o sistema que pune e protege humanos. Porém, há uma lei que protege toda a sociedade dos impactos de uma conduta humana altamente repreensível que tem os animais como objeto do crime. Ela não protege diretamente os bichos, mas parte do pressuposto que maltratar um animal fere a coletividade. Por isso, é preciso de inibir e punir a conduta humana que faz sofrer os animais, pois trata-se de um crime contra os seres humanos em geral, a sociedade. Antes isso que nada. O resultado é uma proteção indireta aos animais.

Trata-se da lei 9.605/98, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e dá outras providências. A grosso modo falando, seria um código penal ambiental. Informa as condutas que constituem crimes, quais penas estão previstas e como aplica-las. No caso em questão, a conduta criminosa de Dalva está prevista no art. 32, § 2º:
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.

E ela foi por fim condenada com base nesta norma, por causar ferimentos que levaram à morte dos animais, além de praticar maus-tratos. Não há outra previsão legal para o caso. A pena, como se pode ver, é de 3 a 12 meses, acrescida de um 1/6 a 1/3, pela morte do bicho. Mas como calcular o total de meses/anos a cumprir? Para isso a juíza precisou recorrer ao art. 69 do Código Penal, que ensina como proceder, utilizando a tese do concurso material (forma de cometimento do crime):


Concurso material
Art. 69 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Traduzindo: determina-se o tempo de prisão para cada crime cometido, somando-se tudo (diferente do crime continuado, para o qual se aplica a pena maior). E quantos crimes Dalva cometeu? Milhares, tenho certeza!!! Porém, só se conseguiu provar 37, pelos cadáveres encontrados. Trinta e sete animais mortes com requintes de crueldade, sob tortura, e após maus-tratos. Trinta e sete crimes idênticos.

Não entendi o porquê da fixação próxima ao limite mínimo. Não há explicação. Talvez por uma questão de cautela. Considerando que os crimes cometidos pela ré devem ser punidos com pena de 3 meses a 1 ano de detenção, optou a juíza por aplicar 3 meses e 15 dias (105 dias) de cadeia pelos ferimentos e maus-tratos. Considerando que os animais morreram por causa disso, ela aumentou a pena pelo mínimo legal: 1/6, ou seja, mais 105/6 dias o que é igual a 17 dias, num total então de 122 dias de detenção (4 meses e 2 dias) para cada animal judiado e morto. Foram 37 animais comprovadamente assassinados, então são 122 dias multiplicados por 37, já que se adotou a tese do concurso material, da prática independente de crimes idênticos. Isso nos leva a 4.514 dias de cadeia ou exatos 12 anos, 6 meses e 14 dias, além de multa pertinente. A pena que será cumprida em regime semi-aberto, já que o dispositivo legal admite apenas a detenção (e não reclusão, que implica em regime fechado de início, em penitenciária com alto índice de segurança). No regime semi-aberto, a pena é cumprida em penitenciária onde se possa trabalhar (colônias penais), sendo recolhido à cela apenas para dormir.

Sabemos que é pouco, pela atrocidade por ela cometida, mas não há previsão legal para nossa sede de justiça. Não ainda... E de qualquer forma, a pena agora aplicada já representa um grande avanço. É inédita. Nossa preocupação tem que ser mais em mantê-la (ainda cabe recurso da defesa) que aumenta-la.

Mas não para por aí. Todo mundo tem direito a recorrer em liberdade. Ninguém pode ser considerado culpado antes de esgotadas todas as possibilidades de recurso. Dalva não poderia ser presa, exceto se houver indícios de que ela possa usar dessa liberdade para prejudicar o andamento do processo (conveniência da instrução criminal), se não tiver endereço certo (o que prejudica a aplicação da lei, quando for procurada para ser presa, se definitivamente condenada), se colocar em risco a ordem social (continuar praticando crimes), além de prova contundente do cometimento dos crimes e da autoria. Estes últimos estão fartamente comprovados. No decorrer do processo, Dalva falseou endereços, o que atende mais um requisito para a prisão preventiva. Sob seu poder ainda estão alguns animais (cavalos, gatos, cachorros, galinhas e ovelhas), que podem estar em risco, em razão da presença do forte indicativo de sua personalidade criminosa, o que obriga seu afastamento (risco à ordem social). Assim, com elementos suficientes, foi decretada sua prisão preventiva, o que a manterá presa até o final do processo em todas as instâncias.

Conclusão: 12 anos e 6 meses de cadeia, presa até julgamento dos recursos, pela morte cruel de 37 animais.

Muita água ainda vai rolar por baixo dessa ponte. Ainda há uma infinidade de recursos possíveis, que levaram um tempo demasiadamente longo para que se coloque um ponto final nesta história. Mas o que foi feito até agora é uma vitória extraordinária. Como cidadã, me sinto satisfeita por saber que enfim a Justiça aproxima a lei da realidade e de nossos anseios na seara da causa animal. Como advogada, me sinto esperançosa por ver o esforço da Justiça em punir exemplarmente alguém que faz tanto mal à sociedade, mesmo diante de uma legislação tão frágil.

Mas tenho medo. É incontestável a psicopatia de Dalva. E psicopatas reincidem. Quem vai vigiar essa mulher, após cumprimento da pena, para que não venha nunca mais a recolher e matar bichos? Este processo foi uma escola para ela. Sua condição sociopata só lhe permite aprender como não deixar rastros da próxima vez. Ela não é uma pessoa comum, normal. Ela se aprimora para o mal, nunca para o bem. Ninguém poderá vigiá-la. Nossa única arma é não permitir que nossos bichos tenham acesso à rua, é castrar o mais cedo possível os nossos animais e os que perambulam, é fortalecer a proteção animal, para que possam recolher os animais abandonados até doá-los, é dar lar temporário, enfim, é nos comprometermos com que essa criminosa e pessoas como ela não encontrem objeto para a prática de seus crimes, impedindo a qualquer custo a permanência de animais nas ruas.

Não pensem vocês que Dalva é única. É a única que se sabe. É a única condenada. É a única sobre quem conseguiram provar os atos criminosos que praticava. Muitos outros criminosos estão por aí, debaixo do nosso nariz. Basta nossa boa vontade para que possamos reunir forças e dividir gastos para contratação de profissional que reúna provas para fazermos com os envenenadores, por exemplo, o que foi feito com Dalva. Mas ninguém tem tempo, né?! Ninguém quer se envolver, ninguém quer gastar, ninguém quer castrar, ninguém quer proteger. Somos todos cúmplices de Dalva.

Não acredito que esta sentença venha inibir outros monstros. Psicopata não tem medo. Mas creio que possa conscientizar as pessoas a ajudarem os protetores a se unirem para que consigamos reunir provas para colocarmos esses psicopatas na cadeia, sejam eles quantos forem, estejam eles onde estiverem.

E a luta continua! Aguardemos o segundo round, isto é, o julgamento do recurso que com certeza Dalva irá interpor.

Espero que tenham compreendido. Se porventura verificarem que precisam de um pouco mais de esclarecimento, avisem. E por favor, não briguem comigo por ter contaminado o texto com minhas impressões pessoais, é mais forte que eu rsrsrs. Da mesma forma, não briguem comigo pelo longo texto rsrsrsrs. A sentença original tem 86 páginas!!! Acho até que resumi demais hehehehe

Aproveito aqui para mais uma vez demonstrar minha admiração às ONGs “de verdade” que atuam na causa animal, aos protetores que se unem e não desagregam, aos simpatizantes e profissionais que contribuem na causa. E um parabéns especial para a Adote Um Gatinho.


Obrigada, Dra. Patrícia Álvares Cruz, excelentíssima Juíza de Direito da 9ª Vara Criminal da Comarca de São Paulo.