Dizem que Jesus está xatchiadu porque, sendo adotado por
José, descobriu que não tem uma família, ao menos não nos moldes do Estatuto da
Família.
Esta e outras piadas surgiram nas redes sociais como
protesto ao referido estatuto proposto por um deputado da tão odiada, mas
imensa, bancada evangélica da Câmara dos Deputados. E diante de tanta coisa que
se diz, resolvi esclarecer o tema. E peço que visitem diretamente a fonte, cujos
links indico ao final do texto, para tirar suas próprias conclusões, antes de
ajudar a disseminar mentira e intolerância.
O Estatuto da Família, projeto de lei 6583/2013, que tramita
na Câmara, prevê a criação de políticas públicas de saúde, segurança e
desenvolvimento para grupos formados por casal heterossexual e seus filhos ou pelo
pai ou a mãe com seus filhos. Estas são as famílias admitidas pelo estatuto,
que não faz distinção se a prole é adotada ou biológica. Ou seja, estes grupos
serão atendidos prioritariamentes em projetos de assistência social desenvolvidos
para eles (saúde integral, reabilitação do convívio familiar, atenção
prioritária à gravidez na adolescência, prevenção de violência doméstica, entre
outros). Além disso, determina que o 21 de outubro, que já é por lei o Dia
Nacional de Valorização da Família, seja comemorado nas escolas, que deverão
ter no currículo do ensino fundamental e médio a disciplina obrigatória de
“Educação para a família”. O documento prevê ainda prioridade de tramitação nas
ações judiciais que envolvam interesses que coloquem em risco a preservação e a
sobrevivência da família. Em resumo é isto. E a justificativa para a criação
desta lei é que, sendo a família a unidade-base de formação da sociedade, esta
precisa ser resguardada a todo custo de tudo aquilo “que dilacera os laços e a
harmonia do ambiente familiar”, tais como as drogas, a violência doméstica, a
gravidez na adolescência, “até mesmo a desconstrução do conceito de família”.
A polêmica reside no fato de que, excluídos deste
projeto, as famílias homoafetivas e aquelas formadas por avós e netos, tios e
sobrinhos ou somente irmãos, não teriam a proteção desta lei. Entendo que não
haverá perda de direitos já garantidos nos diversos documentos legais que já
existem e que tratam dos temas relacionados à família e às questões entre
homossexuais. Nem no que se refere à adoção, nem à guarda, nem ao patrimônio, nem
a outros casos. Trata-se apenas de uma lei que irá dar uma proteção diferenciada
àquele grupo que ela denomina como família. Vale lembrar que existe o Estatuto
da Criança e do Adolescente que já protege e prioriza as ações voltadas para
crianças e adolescentes, pertençam a uma família, ou não. E isto não será alterado.
É o que acredito, mas sei que há risco de decisões judiciais conflitantes com o
que já “colhemos de bom” nesta seara.
De qualquer forma, não gosto desse projeto! Como cidadã,
rejeito a ideia por considerar que se trata de mais um instituto jurídico que
segrega, que distancia a lei da realidade social. Como advogada, acredito que
mesmo sendo aprovado como lei, este documento não irá muito longe. Há muitos
princípios jurídicos e outras leis que podem ajudar a derrubá-lo, se não numa
ação direta de inconstitucionalidade, no caso a caso, com certeza. Sabemos que onde
a lei não restringe, não nos cabe, operadores e aplicadores do Direito, fazê-lo.
A constituição não define a família e portanto creio que não se pode usar um
conceito restritivo para defini-la. Além disso, já há políticas e legislação de
proteção às pessoas consideradas vulneráveis no grupo familiar, que são as
crianças, os adolescentes, os idosos e as mulheres, não havendo necessidade de
criar outras políticas para estas mesmas pessoas, demandando inclusive custo.
É papel das leis normatizar as relações sociais
existentes. A sociedade vai se articulando e o direito vai acompanhando. E não
o contrário! O conceito de Justiça determina que a lei deve ser aproximar dos
anseios da sociedade. E a sociedade tem exigido reconhecimento jurídico de toda
e qualquer forma de relação. Inadmissível que neste contexto surja uma lei
segregadora.
E não para por aí!
Somos tão manipulados até quando bem informados, que ninguém
lá no tar de feicibuqui fala de um outro projeto de lei que também trata do
assunto e que está tramitando no Senado Federal: o Estatuto das Famílias. Este
assim, no plural.
É o projeto de lei 470/2013, do Senado Federal, e que
protege a família, sob qualquer forma pela qual ela se apresente. Este projeto
compila tudo que as leis esparsas e a jurisprudência acata para as famílias,
não importando sua composição, facilitando a aplicação do direito, e inova em
muitos temas relacionados. Fala sobre o que são as relações de parentesco, sobre
os deveres dos integrantes do grupo familiar, dos princípios que devem reger as
relações, do casamento, do divórcio, especifica os diversos tipos de família e
tantas outras coisas, de maneira bastante minuciosa. Revoga no Código Civil todo
o livro Direito de Família.
Ainda que mais favorável a este projeto, como advogada,
pelo fato já mencionado dele facilitar a aplicação do direito, como cidadã
tenho algumas restrições. É que ele amplia mais que o devido, as relações
familiares. Ele é tão extenso e detalhista que é difícil informar aqui tudo que
ele propõe. Mas ele admite, por exemplo, que o enteado requeira alimentos do padrasto
ou madrasta, em complementação aos alimentos pagos pelos pais. Como se vê, ele
iguala o padrasto e a madrasta ao pai e a mãe, determinando inclusive que os
primeiros exerçam a mesma autoridade sobre os enteados, junto com os pais e as
mães. É a chamada família multiparental ou famílias recompostas. Acho confuso este
compartilhamento de autoridades e deveres e, por isso, inviável, exceto na
falta dos pais biológicos, claro. Um ponto muito criticado nele é o fato de
impor deveres a quem mantém entidade familiar paralela, ou seja, aos bígamos e
polígamos. Particularmente, acho justo mas entendo que tais relações não devam
ser tratadas no patamar da família. Outro ponto é o fato dele aceitar o
registro de nascimento que tenha como pai e mãe presumidos a pessoa com quem se
tenha convivido à época da concepção. Mesmo que tenha sido uma relação eventual.
Considero muito temerosa tal aceitação, já que relações eventuais não se pautam
pela fidelidade.
Enfim, em que pese alguns benefícios, muitos são os
defeitos de um e de outro projeto. Muitos são os riscos de bagunçarem o
Judiciário com decisões conflitantes, inconstitucionais. Mas ainda assim confio
na Justiça. E creio que caberá a ela, antes do Supremo, os “ajustes finais“ de
qualquer destes estatutos que vier a se tornar lei.
De qualquer forma, não são nossas vagas especulações em
redes sociais que determinarão a aprovação ou rejeição e o alcance destas
normas. Mesmo porque, se há tanta controvérsia no âmbito jurídico especializado
sobre estes documentos, quem somos nós, pra darmos aula em publicações
facebooquianas sobre o tema?
Bom, os projetos estão em tramitação, cada qual numa casa
do Congresso e em breve serão reunidos. Aí serão novas discussões, novas
análises, novas votações.
Acompanhe a tramitação dos projetos, leia as discussões,
pesquise no Google as controvérsias e formule suas próprias conclusões (se for
capaz!).
Projeto de lei 6583/2013 – Estatuto da Família
O documento:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1159761&filename=PL+6583/2013
Tramitação:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=597005
Projeto de lei 470/2013 – Estatuto das Famílias
O documento:
http://www.senado.gov.br/atividade/Materia/getPDF.asp?t=140057&tp=1
Tramitação:
http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/115242
Muita luz pra todos nós!
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