Terreiro de audiência

Segue abaixo o que passei numa comarca próxima a Belo Horizonte, há alguns anos, só para você saber um pouquinho daquilo que enfrentamos no dia a dia da profissão. É cliente mentiroso, é colega sacana, é juiz preguiçoso, é assessor pretensioso, é funcionário mal preparado, é nossa própria limitação intelectual e até orixá tá na parada rsrsrs

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Enquanto eu tentava esconder meus pés embaixo das cadeiras, um homem alto, barrigudo, mal vestido, entrava e saía da sala de audiências apregoando as partes. Escondia meus pés com medo de observarem que eu não estava usando salto. Não estou dando conta. Inflamação no calcanhar, calos ósseos, cansaço, sobrepeso foram itens responsáveis pela decisão de trocar os sapatos fechados e os saltos por um chinelo ortopédico, meio salto, confortabilíssimo. Mas horroroso!

E lá estava eu, escondendo os pés e vendo o entra e sai da figura. Camisa pólo vermelha desbotada e desbeiçada, que ao cobrir a barrigona, parecia saia. Calça larga cáqui de brim vagabundo, de elástico e cadarço de amarração na cintura e tênis preto. Barba grande, branca como o bigode. E no pescoço vários daqueles colares chamados guias de Orixás.

A audiência designada para as 16:30 horas teve início às 18 horas. Pauta: divórcio com pedido de alimentos para 2 filhos menores e partilha de bens. Situação: peticionado acordo firmado entre as partes, ainda não analisado pelo juiz.

E por falar em juiz... Cadê ele? Bom, quem sentou na cadeira do juiz foi o dito cujo de tênis e mal vestido que apregoava as audiências. Ok. Passei a tratá-lo por excelência.

E começa a Excelência a questionar porque as partes não vendiam o imóvel, ao invés de insistirem em morar no mesmo lote, ainda que em residências separadas. Argumentamos que são várias moradias e lojas, com renda mensal necessária à manutenção das partes e que não havia interesse do casal em se desfazer do bem. Insistiu o Meritíssimo, que o bem deveria ser vendido e o dinheiro partilhado, porque sua experiência de 40 anos de estrada lhe dizia que amanhã o marido arrumaria uma amante e a esposa um namorado, o que levaria um a querer matar o outro.

Diálogo que se seguiu entre a advogada de chinelinho feio e o juiz de camisa desbeiçada:

- Mas, Excelência, não há conflito entre o casal.

- Mas amanhã ele mete 3 tiros nela.

- Excelência, pra dar tiro, pode um morar no Japão e outro na China, que irão se matar, não necessariamente porque moram no mesmo lote...

- Então temos aqui uma vidente futuróloga, mas vidente eu também sou e sou muito mais eu, porque sou pai de santo.

E beijou uma das guias que trazia no pescoço. Pra tentar levar na brincadeira situação tão ridícula, brinquei:

- Ah, então o senhor ganhou de mim, porque eu não sou médium.

Ele me ignorou completamente e mandou chamar o promotor. Enquanto este não vinha, o juiz se contorcia na cadeira tentando convencer minha cliente a vender o bem, proposta insistemente recusada por ela. Chega o representante do Ministério Público e propõe, politicamente, uma redesignação de audiência.

De repente, aquele a quem eu me dirigia como Excelência, nítidamente contrariado pelas repetidas recusas de minha cliente e pela falta de apoio do promotor, começou ditar a sentença colocando fim no processo, considerando pedido juridicamente impossível a partilha de imóvel indivisível.

Pasmei! Pensei que não estivesse entendendo direito. Olhei pro advogado da outra parte e perguntei: "Ela tá extinguindo o feito?" O colega espalma a mão pro meu lado, num claro pedido para que eu me acalmasse e mexe os lábios parecendo dizer "Vamos apelar.".

Mas ora, o pedido era de: divórcio, ok, partes de acordo; alimentos pros filhos menores, ok, provisórios já definidos e parte contrária já pagando; partilha de bens, também já convencionada entre os cônjuges. Poderia decretar o divórcio, converter os alimentos em definitivos e negar a partilha. Não! Extinguiu o feito. Deu fim ao processo, prejudicando os interesses de minha cliente, já que neste caso nem os alimentos seriam mais devidos.

Fiz menção de dizer nem lembro mais o quê e o outro advogado mais uma vez espalma a mão pra mim. Mas não dava pra engolir. Virei pra minha cliente, apontei pro juiz e disse: "Você tá entendendo o que ele tá fazendo contigo? Tá negando seu divórcio e nem pensão seu marido deve mais pros filhos, o que significa que se ele parar de pagar, não poderemos cobrar... Só porque você não quer se desfazer do imóvel."

E o outro advogado enquanto continuava me pedindo calma com gestos, fala com o Meritíssimo:

- Pela ordem, Excelência, o senhor não pode homologar o acordo referente ao divórcio e aos alimentos?

E o Pai de Santo:

- Eu não fraciono processo.

Congelei. Só lembro da minha boca aberta olhando pro colega à minha frente, que continuava me pedindo tranquilidade com a mão espalmada na minha direção, balbuciando "Vamos apelar! Temos que apelar!"

A Oficial que auxiliava o juiz, como de praxe, nos entrega cópia da ata da audiência, com a sentença, pedindo que lêssemos para ver se estava tudo ok, no que o Filho de Xangô puxa os papéis de nossas mãos, dizendo: "Não precisa ler. Eu não mudo Sentença." Levantou e foi para o reservado do Gabinete.

Os anos se passaram e sempre que me lembro do que passei neste dia fico pasma. A aparência daquele homem, os símbolos religiosos na sala de audiência, a arrogante petulância, tudo parecia um circo dos horrores. E ainda agradeço ao colega, advogado da outra parte, que, pedindo que eu não me exaltasse, muito provavelmente me livrou de uma prisão e processo por desacato. E ainda fico indignada ao lembrar do promotorzinho de cabeça baixa, fingindo que não via o que estava acontecendo.

Definitivamente, aquilo não foi uma audiência. Foi um ritual de magia negra. Xangô brincando de juiz, que ao ser contrariado sacrificou a galinha preta, no caso, minha cliente.

E pra quem tá se perguntando, não, não reclamei na Corregedoria, porque isso prejudicaria todos os meus clientes cujos processos fossem distribuídos para aquele Terreiro, e os honorários que me pagam, não custeia agravos e mais agravos, além de apelações sem sentido.


Muita luz e axé para todos nós!

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