Cinco
exploradores ficaram presos numa caverna após um desmoronamento. Acionado o
resgate pelas famílias, novos desmoronamentos ocorreram, inclusive com morte de
toda uma equipe de bombeiros. Vinte dias após o primeiro desmoronamento outra
equipe de resgate conseguiu contato via rádio e informou ao grupo que seriam
necessários mais 10 dias para resgatá-los. Porém, eles não tinham mais comida.
Para manterem-se vivos, decidiram comer um dos amigos. Mas qual?. Foram
consultadas autoridades médicas, religiosas e políticas, mas ninguém quis
participar da decisão. Um deles propôs jogar dados, quem perdesse seria o
alimento dos demais. E justo quem fez tal proposta perdeu, foi morto e comido
pelo grupo, que conseguiu então manter-se vivo até serem resgatados.
Da
caverna, foram para os Tribunais e condenados por homicídio. Recorreram e dos 4
juízes que deveriam votar o recurso, nenhum teve opinião igual ao outro.
O
primeiro juiz entendeu que os acusados deveriam ser absolvidos. Leis são feitas
para a vida em sociedade. Quando estavam na caverna os exploradores não estavam
em sociedade e portanto não havia lei que vigorasse ali. Assim, não há que se
falar em homicídio. Prevaleceriam as leis naturais de sobrevivência, de salvar
a própria vida. O segundo se absteve de julgar, considerando que não havia lei
aplicável a um caso tão inusitado. O terceiro juiz entendeu a situação e o
dilema dos acusados, mas entende que seu trabalho é aplicar a lei e a lei diz que
não se pode matar outro alguém. Por isso, votou pela manutenção da condenação.
E o quarto juiz aponta uma pesquisa que demonstrou que a opinião pública
entendia que eles não cometeram crime algum. O grupo fechou um acordo de
sobrevivência, todos concordaram e o acordo foi cumprido. Eles fizeram a lei e
eles a cumpriram. Assim, sendo papel do Direito atender aos anseios da
sociedade, os sobreviventes deveriam ser absolvidos.
No
final das contas, diante de tanto impasse, a Suprema Corte manteve a sentença e
condenou os exploradores de cavernas à sentença de morte.
Este
foi o primeiro dilema com o qual me deparei assim que entrei na faculdade de
Direito. Uma situação, 4 posicionamentos distintos, 4 verdades.
Vive-se
agora outro dilema. Foi estupro ou não foi estupro? Num território dominado
pelo tráfico, eles fazem as leis; não houve estupro. A opinião pública esta
dividida: foi estupro porque não houve consentimento; não foi estupro porque
ela tinha esta prática, este costume de fazer sexo drogada com os rapazes da
região, para ganhar pedras de crack. E para mais alguns, foi estupro, porque a
lei é clara sobre isso e ela deve ser aplicada, independente do contexto.
Casos
diferentes, mesmos dilemas morais e jurídicos. E todos acreditando que a sua
verdade é a absoluta.
Verdades
são relativas. Em especial no Direito, onde há tantas teses, correntes e interpretações.
Interpretação literal, histórica, contextual, extensiva ou restritiva? Quando
você diz que foi estupro, qual interpretação está realizando? E você, que diz
que não foi estupro, esta fazendo qual interpretação? Ninguém sabe! Só sabe que
a sua verdade é a mais verdadeira.
Eu não
fiquei 5 anos numa faculdade pra ficar assistindo leigo dando aula sobre
Direito Penal. Mas concordo que o tema é apaixonante e as pessoas viajam na
maionese na legislação criminal. Assim como eu mesma viajo legal na Psicologia
sem ter qualquer formação na área. O que a gente não pode esquecer é que
justamente por haver tantas formas de ver o mundo, o fato e a lei, que nenhuma
verdade é absoluta e que dados baseados em mídia sensacionalista mais manipulam
que informam. É o juiz que vai dizer qual é a verdade daquele contexto. Porque
a verdade dos fatos está no processo. Não é o delegado, não é o Ministério
Público, não é a mídia, que irão julgar.
O papel
do delegado é colher provas, evitando que elas se percam até que se forme um
processo judicial. Pronto! Delegado não julga. Ele forma uma convicção. Ele
entende que houve um crime e encaminha para a autoridade competente dar início
a um processo judicial. E pode acontecer de nada que foi elaborado pelo
delegado ser aproveitado no processo judicial. É que como não há contraditório,
defesa, no inquérito, as provas são vistas com restrições e precisam se
confirmar perante o juiz. E no processo, vai-se formando mais uma verdade.
Não é
raro que a realidade do processo judicial seja diferente da realidade da vítima
e da realidade do acusado. Ainda assim, ela há de prevalecer! O que não está
nos autos, não está no mundo. Juiz não tem bola de cristal. São as provas que
estiverem no processo e a interpretação que o magistrado fizer delas e da
legislação é que determinarão qual decisão tomar.
O caso
que abriu este texto ilustra o debate entre o Direito Natural, o Direito
Positivista e o Direito Realista. Grosso modo falando, o Direito Natural, o Jusnaturalismo,
ensina que as leis devem ser analisadas levando-se em consideração a razão, a
moral e até o divino. Naquele momento, aquela atitude teve um fundamento moral
válido e portanto não há que se falar em crime. O Direito Positivo, o Juspositivismo,
já determina que a moral do intérprete não deve contaminar a interpretação das
normas jurídicas. No momento em que aquela atitude ocorreu havia lei que a
condenava, que a julgava como crime. Portanto, houve crime. Já o Realismo
Jurídico acredita que a norma jurídica não é tão importante; deve-se levar em
consideração apenas aquilo que outros juízes decidiram em casos anteriores. Não
é a moral, nem a lei que devem prevalecer, mas sim a decisão do juiz, que cria
o direito a partir do caso concreto. A lei é apenas referência. Apesar de haver
lei que condene, como aquela atitude é vista pela sociedade?
E aí?
Quando você diz que foi, que não foi, que talvez tenha sido, você diz isso com
base em qual corrente? Porque se sua opinião for dada para embasar a ocorrência
ou não de um crime e a punibilidade correspondente, temos que falar em
correntes jurídicas, interpretação legal. Se não é o seu caso, se não tem
formação pra isso, sua opinião serve apenas para embasar seu julgamento moral.
E seu julgamento moral vai determinar a sua conduta. Se você acredita que no
que você diz, aja de acordo com isso. Mas a sua verdade pode não ser a minha e
eu vou agir com base naquilo que eu julgo correto e não no que você assim
considera.
Eu
tenho esse defeito de acreditar que a minha opinião deve ser a verdade de todo
mundo, de acreditar que se todos agissem como eu o mundo seria melhor (rsrsrs).
Eu e meio mundo! Mas, ainda que no calor da discussão eu demonstre tal
arrogância, sei que as coisas não funcionam assim.
- Dri,
foi legítima defesa ou não foi?
- Uai,
depende! Você quer saber minha opinião como Adriana ou como Dra. Adriana?
- Não
entendi!
- Como
pessoa, sem pensar juridicamente, penso de um jeito que nem sempre corresponde
ao que devo defender como advogada.
- Tá!
Como advogada!
- Não
foi legítima defesa. Tiro na nuca é execução. O moço já estava imobilizado. O
atirador era menor e mais fraco que a vítima. Como advogada, não acato a tese
da legítima defesa.
- E
como gente?
- Oi?
- E
como gente normal?
Arregalei
os olhos pra ela:
-
Advogado não é gente normal?
- Mas
foi você quem falou que...
- Tudo
bem, entendi. To de sacanagem contigo... Como “gente normal”, foi legítima
defesa! Um cara armado vem pra cima de mim, atira em pessoas que amo e eu ainda
tenho que ficar pensando onde atirar para não pagar por homicídio? Se der mole
com a arma, eu pego e atiro em qualquer lugar, de qualquer jeito.
-
Então... O juiz vai olhar isso, né?!
- Não!
O assunto é técnico, e minha opinião como leiga, não tem valor nenhum.
-
Entendi... Então o juiz não vai dar legítima defesa, né?
- Não
sei.
- Uai!
Mas sua opinião jurídica não é o que ele tem que considerar?
- Não!
Pode ser que sim, pode ser que não. Ele vai ler tudo que os advogados disserem,
vai analisar as provas, vai estudar as decisões em outros casos parecidos e na
sentença pode chegar a uma conclusão diferente da minha opinião técnica.
-
Nossa, que confusão!
E é pra
confundir, mesmo! A vida da gente não pode ser decidida tão facilmente, de modo
que leigos já tenham solução imediata para tudo, com uma simples análise do que
viu na mídia.
Mas e aí? Me conta! Você mataria seu amigo para
manter-se vivo até a chegada do resgate? Você comeria carne humana para
manter-se vivo? Tente responder colocando-se naquele contexto em que você está
prestes a morrer. Até acredito que ninguém se conhece, afinal não vivemos
situações extremas. Mas coloque-se imaginariamente em risco de vida e me conte
o que você faria e porquê.
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