Os invisíveis

- Travéssarrua! Travéssarrua! Travéssarrua!

Agora, na minha vizinhança, fica um mendigo cego. E como tá cheio de moradores de rua, ela fica pra lá e pra cá de papo com eles. Atravessa a rua pra lá, atravessa a rua pra cá. Mas, as vezes, não tem ninguém para ajudá-lo e ele fica lá, gritando, para alguém atravessá-lo.

- Travéssarrua! Travéssarrua! Travéssarrua!

E grita assim mesmo: “travéssa a rua” e não “atravessar a rua”.

Belo Horizonte tinha um trabalho bacana com moradores de rua, mas ultimamente tem deixado a desejar. E eles estão proliferando. São muitos perto da minha casa, mas de tempos em tempos mudam. Uns somem e aparecem outros. Fazem as necessidades fisiológicas nas proximidades da portaria do meu prédio e não vou dizer o que tenho vontade de fazer com eles, por causa disso. Só posso dizer não farei porque tenho muito que viver ainda e o medo de passar décadas encarcerada me deu medo.

O Ministério Público de Minas Gerais criou uma cartilha sobre os Direitos dos Moradores de Rua. Muita gente critica. Afinal, quem vive na vadiagem tem direitos? Não é bem assim. Há leis que defendem essas pessoas, que não são necessariamente vadios, e temos que cumpri-las. Esta cartilha foi lançada junto com um projeto de reinserção psicossocial, mas parece que a coisa não vingou, porque a galera continua lá no meu quarteirão. Porém, sei que muitos obtiveram, com ajuda da Prefeitura, benefícios assistenciais e saíram da condição de miséria. São doentes mentais, deficientes físicos e usuários de drogas amparados pelo Governo. Tudo dentro da lei. Alguns, com esse dinheirinho, foram cuidar da vida. A maioria continua na rua. São pessoas, como uma velhinha ali perto do meu trabalho, que até tem casa em outra cidade, tem aposentadoria, mas não sai da rua. É roubada, judiada, mas não sai da rua. Outra moradora de rua, bem mais nova, mais articulada, conta que já trabalhou como técnica em Contabilidade, mas que teve um “revertério” com a família e foi parar na rua. Está na fila da Prefeitura para ganhar uma casa, mas sempre passam usuários de drogas na frente dela. Já são 6 anos nessa espera.

O morador de rua tem direito à vida com saúde, trabalho, educação, segurança, moradia, assistência social e lazer. E não me faça essa cara de “aham, sei...” Não são vocês, não somos nós que defendemos que todos somos iguais? Pois é! As pessoas têm direito de ir, vir e permanecer nos locais públicos e qualquer forma de discriminação ou prejuízo a eles, pode ser severamente punida pela Justiça, como seria conosco. A Cartilha do Ministério Público, inclusive, orienta como eles devem registrar ocorrência policial e onde buscar providências para se fazerem respeitados. Indica que devem ser unir e participar de reuniões do conselho de assistência social do município para obter acesso a uma série de benefícios e reivindicar outros.

Pode soar estranho que alguém, em especial uma grande entidade como o Ministério Público, se ocupe em defender e orientar quem nos parece desprovido de qualquer cuidado consigo mesmo, enquanto nós trabalhadores, pais e mães de família possuímos tanta dificuldade para fazer valer nossos direitos. Mas se defendemos a bandeira da igualdade e da inclusão, ninguém pode ficar de fora. Ninguém! A lei nos nivela, nos concede igualdade e não há por que escolher quem é igual e quem não é, para decidir se tem direitos ou não. Tem direitos e ponto final.

Assim, o morador de rua ou, como agora se diz, a pessoa em situação de rua não precisa da sua piedade. Não precisa da sua sopa, não precisa do seu agasalho. Precisa apenas de auxílio para exercer seus direitos e deveres. Sim, eles também têm deveres, como todos nós. Eles têm o direito de permanecer na rua e possuem o dever de não fazer dela moradia. De acordo com a lei, rua é local de passagem, local público não pode ser morada. Por isso, a Prefeitura recolhe colchões, fogões, sofás, panelas e tudo que esteja nas ruas e praças com caráter de domicílio. Eles têm direito de ir, vir e permanecer e possuem o dever de não sujar e não impedir a passagem.

É claro que se trata de um assunto complexo, que envolve questões morais e sociais, além do lado jurídico da coisa. Só queria mesmo lembrar a vocês (e a mim mesma, principalmente!) que quando levantamos as bandeiras de igualdade, liberdade e respeito, isso inclui todo mundo e o “todo mundo” é a soma das pessoas que a gente vê e daquelas que nos são invisíveis, como os que vivem nas ruas.


Muita luz para todos nós!

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